26.9.09

Cérebro de Corda


   A chuva caía serena. No vidro, as gotas d’água desciam com velocidade. Era bonito. Dentro, um mundo cinza de modernidade, seco e frio – uma aura de solidão no ar. Mas éramos dois no carro. Lá fora não dava para ver muita coisa, estava escuro e, embora calma, no horizonte tinha intermináveis fileiras da mais cinza chuva.
- Aonde nós estamos?
- Hm... Em Paris.
   Ela respondeu deitada no banco de trás. As mãos atrás da cabeça, encobertas pelo cabelo negro e comprido dela. Sua cabeça levemente encostada na porta, seus olhos apontavam para a outra janela – o narizinho pontiagudo também. Eu estava de frente ao volante, vendo a chuva escorrer pelo vidro da frente.
- E agora que que a gente faz?
- Agora, a gente dança. – a voz dela era quase sussurrante, suficiente apenas para chegar aos meus ouvidos.
   Eu tateei os bolsos da calça e depois o da minha camisa. Em vão, os cigarros já tinha acabado. Como se os cigarros fossem um tipo de parapeito, eu me sentia caindo naquele banco. Caindo dentro de lugar nenhum, só caindo. Como nos sonhos, só que acordado.
- O que a gente está dançando?
- A gente dança... Aquela música.
   Isso queria dizer que nós estávamos dançando El dia que me queiras, um tango do Carlos Gardel. Pode parecer estranho, essa ser a música de um casal do século XXI, mas era o que tava tocando na festaça do tio dela (melhor amigo do meu pai). Podia ter sido pior, podia ser um bolero sem graça. Acho que eu ficaria com vergonha se fosse Demônios da Garoa. Imagina se a gente se conhece naquela parte da festa que toca músicas animadas que tocam em todas as festas. Nossa música seria... Great Balls of Fire, do Jerry Lee Lewis, ou Twist, dos Beatles. Seria uma piada. Até que Carlos Gardel foi perfeito. É bem bom se você parar pra prestar atenção.
- Você não está com frio?
- Não.
   Eu senti um arrepio. Setembro congela meus nervos às vezes. Passei minhas mãos com velocidade nos meus braços – como se fosse um auto-abraço – para me esquentar. Lembrei de uma viagem que a gente fez pra friburgo. Se auto-abraçar significava: mais conhaque. O frio deixou nós dois embriagados naquelas férias.
- E agora que a música terminou?
- Eu não sei.
   Minha respiração estava pesada, meu pescoço doía – parecia um tronco. A chuva era nossa lounge music. De repente, uma luz começou a piscar, borrada, lá fora. Era um alarme de carro que disparou. E depois outro. Eu olhei para fora, não sabia o que era. Limpei o embaçado do vidro com o antebraço. Dois garotos encharcados de água de uns quinze anos passaram fazendo os alarmes dos carros dispararem. Até que um deles parou e me viu dentro do carro. Com os olhos em mim, ele tentou cutucar o outro garoto com a mão e rapidamente os dois estavam correndo, aos tropeços, de volta de onde vieram. Como se tivessem visto um fantasma.
   Eu fecho os olhos. Tento pensar em coisas boas. Naquele verão, quente e úmido do semestre passado. Nas luzes de Niterói, de madrugada. Aposto que aqueles garotos estavam bêbados. Tão cedo?
   Uma músiquinha briga com o som da chuva. “Acaricia mi ensueño...”, a voz inconfundível de Gardel. Eu atendo lentamente, minha mão está tremendo. Sem falar nada, ouço a voz dela na linha:
- Onde é que você tá?
   Eu faço silêncio, pensando que aquela era uma pergunta confusa.
- Seus pais tão preocupados, nem o Tiago sabe onde você tá.
   Outro arrepio, meu cérebro parece parar lentamente. Alguém precisar dar corda nele. A chuva piora.
- Ei! Responde alguma coisa!
   Eu me auto-abraço, mas a garrafa de conhaque já está vazia faz tempo.
- Tomás! Não faz isso comigo! Você disse que tava bem!
   Eu tento ir para o banco de trás, lá parece mais confortável. No entanto, meu cérebro está congelado. É difícil sair do lugar assim.
- Me diz! Onde você tá agora?
   Meu pescoço dói, meu cérebro está parado. Ainda assim, as palavras vem à minha mente e eu finalmente respondo:
- Em Paris.
   O século XXI não é como um tango de Carlos Gardel. Eu passo a mão na testa. Agora minha mão está suja de sangue. E eu me sinto deslocado.

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